quinta-feira, 6 de março de 2008

A rica Matemática cultural do caboclo paraense

Uma das coisas que mais me chamou atenção quando cheguei ao Pará foi descobrir que aqui se compra farinha e camarão por litros. Isso mesmo! No Ver-O-Peso ou outras feiras de Belém, certos produtos como camarão e farinha são medidos em litros. Ora, considerando que o litro é usado para medir volume (geralmente de líquidos) e não massa, soa um tanto estranho a ouvidos acadêmicos quando alguém emprega essas unidades de medida não convencionais, não acha? Com o tempo fui aprendendo que existem outras unidade de medidas empregadas pelos cidadãos da paraônia, como o frasco e o paneiro, para farinha; o côfo e a pêra, para caranguejos; a lata, a rasa e o paneiro, para o açaí em caroço; a tarefa, para área roçada; a carreira, para plantação de eucalipto; a linha, para plantação de arroz; o palmo-de-pé para medir comprimento; mão-de-milho com 25 espigas etc. Descobri*, ainda, que os habitantes de regiões ribeirinhas da Amazônia, no embate entre a floresta e o rio constrem, desenvolvem e/ou se apropriam de saberes matemáticos que satisfazem plenamente suas necessidades cotidianas. De fato, o conhecimento matemático resulta das interlocuções estabelecidas pelo homem com os elementos culturais do contexto no qual é produzido. Quando assumido como linguagem, esse conhecimento torna-se um recurso fundamental no exercício de leitura da realidade, voltadas à elaboração de soluções aos problemas cotidianos na caminhada pela melhoria da qualidade de vida. Dessa forma, por conta das incontáveis relações estabelecidas pelo sujeito com as diversas estruturas presentes no sistema social, a Matemática surge como um fenômeno que se desenvolve na comunidade, pela comunidade e para a comunidade. É sabido que o processo de construção de conhecimentos é o responsável pelo pleno exercício da extraordinária capacidade sincrética e pragmática do ser humano; isto é, nossas habilidades em fundir ou amalgamar elementos distintos dando-lhes a aparência de algo inédito, como um novo conceito ou um novo objeto; seja (re)modelando ou (re)criando, seja atribuindo uma nova serventia ou finalidade àquilo que já é de uso corrente. O que acho fantástico na criatura humana é sua capacidade de interpretar a leitura do simbólico, ou seja, ser capaz de relacionar-se com o ausente (representado por um símbolo, signo ou sinal) como se lhe fosse coisa presente (essa idéia me parece pertencer a Merleau-Ponty, filósofo francês, 1908-1961). Nessa perspectiva, “a matemática se constitui em um desses exercícios cognitivos nos quais a sociedade humana se apóia para inventar e materializar realidades ‘imaginárias’, necessárias ao estabelecimento de uma conexão entre o possível e o desejado pela mente do inventor”(MENDES,2005. p.89). Em 10 anos ministrando cursos de formação de professores pelo hinterland paraense, observei e busquei explicações de como esses indivíduos lidam com o ambiente usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios de sua cultura. E para mim fica claro que o cotidiano de toda e qualquer comunidade humana, desde seu alvorecer, está impregnado de Matemática como um artefato ou mentefato (D’Ambrosio, 1996), como uma ferramenta pela qual e com a qual o homem transforma o mundo e transforma a si mesmo. Nesse processo dual e cumulativo que Marx denominou de práxis, o indivíduo produz conhecimento, edifica/desenvolve sua cosmovisão - ou cosmoconcepção - tendo a linguagem como suporte e a escrita como base de sua cultura. Por outro lado estabelecer relações, fazer comparações, classificar, quantificar, mensurar etc. são práticas matemáticas imanentes à criatura humana e anteriores à sua própria escrita e fala. Para mim, o pensar matemático é, talvez, uma das formas mais complexas e complicadas do ser humano trabalhar. Nessa prática, que começa no cogitos e termina no fiat, a mente transcende as limitações da matéria física, da corporeidade e adentra planos somente possíveis aos que sabem reconhecer e interpretar os símbolos, os signos e os sinais matemáticos. Parece claro, então, que a construção do pensamento matemático é uma decorrência das necessidades de sobrevivência do ser humano. Alguém pode dizer que é a leitura e a escrita (ação individual) que introduz o cidadão num mundo cujo acesso só é possível pela linguagem, porém é o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático estruturado nas relações do sujeito com o meio (ação sociocultural) que estabelece a construção ativa de seus saberes e conhecimentos. Esses dois eixos ou enfoques foram explorados por Piaget, Vygotsky, Ausubel, Schön, J. Dewen, Paulo Freire, em teorias conhecidas como Construtivismo e Interacionismo. Quanto à escrita, o certo é que “investigações arqueológicas realizadas em diversas partes do planeta (...) têm concluído que os primeiros sistemas de escrita surgiram com a finalidade de representar aspectos cognitivos referentes ao exercício do cálculo, cobrança, divisão e distribuição da riqueza produzida e acumulada pela sociedade humana” (MENDES, op. cit. p.13); e em relação à fala, parece que o homem aprendeu a contar antes mesmo de desenvolver um sistema de comunicação inteligível e coerentemente. Referencias D'AMBROSIO, Ubiratan. Educação Matemática: da teoria à prática. Campinas, Papirus Editora. 1996. MENDES, Iran A. Números, o simbólico e o racional na História. Natal: Flecha do Tempo. 2005 *Artigo: Matemática, educação e cultura na Amazônia: um relato de práticas de etnomatemática em escolas multiseriadas na Ilha do Marajó, apresentado no I Encontro Regional das Sociedades, 2005. Belém-PA.

2 comentários:

Rocio Rodi disse...

Franz,
Estava eu passeando na internet pensando, viajando e dialogando sobre as medidas dos ribeirinhos, a matemática das águas e do povo "plantadô" que me faz mais imaginar, assim ouço as vozes do "caboclo faladô" e encontro o discurso escrito desse tornado paraense cheio de poesis matemáticas e suas tatuagens que nos faz aprender a aprender sobre as metacognições deste povo do "Ver-O-Peso" e outras feiras belemenses às tantas outras que se apinham nesse gigante estado, a nos acolher e nos fazer desenvolver competências pelos múltiplos saberes, dizeres e aprendências paraônicas. Boa aula. Magnífica. Agradeço a etnomatemática que me trouxe até aqui. Maria do Rocio

esteblogminharua disse...

Oi, Rocio. Muito grato por suas palavras. Assim como agradeces a etnomatemática que te trouxe aqui, agradeço igualmente a ela o prazer que me deu em conhecer e aprender sobre a matemática cultural, materma, deste povo tão criativo.
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