“Entrei pela perna do pato, sai pela perna do pinto...” ou A Magia Da Tradição Oral: o Contador de Histórias.
Antigamente, o contador de histórias era um tipo necessário na sociedade, que não contava com a televisão e seus recursos. Desempenhava ele um dos papéis mais importantes na educação informal das crianças: dava-lhes os elementos necessários para a compreensão da realidade, que muitas vezes parecia-lhes adversa, medonha, sombria. Através de suas histórias, seus contos, “causos”, fábulas, lendas, etc. o contador apresentava uma visão de mundo, com seus conflitos humanos e sociais, com suas lições de vida, as quais o ouvinte iria recorrer nalgum momento de sua vida.
Originalmente, os “contos” eram narrados na Idade Média, durante as noites invernosas nos castelos “mal-assombrados”, nas fazendas isoladas, nas aldeias espalhadas pelos campos, com a finalidade de trocar experiências e afastar os temores e aflições pela corrente de força criada pelo grupo quando reunido ao redor do “contador”. A luz bruxuleante das fogueiras, ou das lareiras acessas, projetava sombras fantasmagóricas ao redor do grupo e atiçava-lhes a, já fértil, imaginação. O mundo de então era povoado por monstros, dragões, demônios, magos e feiticeiros, por seres encantados e encantadores. A magia pairava no ar, espalhava-se nas fumaças das fogueiras e chaminés, escondia-se nas sombras, despertava no crepitar do fogo. E nesse ambiente é que surgiu a importante figura do Contador de Histórias.
Além de repetir estórias,o contador também as criava, a medida que observava as reações de seus ouvintes. A educadora Bárbara Freitag, num excelente artigo para o Jornal da Alfabetizadora intitulado "O conto de fadas na sala de aula" ( n o. 13. 1991, 17-19 ) atesta que o narrador “era ao mesmo tempo inventor e repetidor de ‘estórias’.” E acrescenta: “elas são verdadeiras formações arqueológicas, compostas de camadas e camadas de saber popular, em que dificilmente se distingue o que cada narrador posterior acrescentou, omitiu ou distorceu do conto ‘original’.” Trocando em miúdos isso quer dizer que quem conta um conto aumenta um ponto.
A narração tem o poder da palavra, do som e suas inflexões, aliada ao gestual simbólico do narrador. A narração não é uma declamação, é uma prosa, e sofre modificações conforme o ambiente, a ocasião, a platéia. Um “contador” conhece e utiliza, mesmo que intuitivamente, quase todas as figuras de linguagem ( como metáforas e catacreses ), figuras de sintaxe ( ênfase no pleonasmo ) e figuras de pensamento ( principalmente a hipérbole e a prosopopéia ). Dessa forma, a narração de uma história, de um conto, lenda ou mito, ganha um enorme poder, podemos até mesmo dizer, hipnótico, capaz de transformar a fantasia em realidade, de evocar emoções, de fazer o ouvinte “viajar” nas asas da imaginação. A criança acostumada a ouvir histórias desenvolve e estimula a imaginação, além de também desenvolver o gosto pela leitura e pelas pesquisas.
A leitura deve servir para que se possa ampliar os referenciais de mundo, e não para um acúmulo de informações. Para acumular informações existem os computadores. E para abrir caminho à leitura, nada é melhor do que ouvir as histórias contadas pelos antigos, pelos avós; os “causos” sucedidos com os mais velhos, as novelas míticas tão cheias de magia e encantamento. Contar histórias não é só uma arte que guarda as tradições culturais de um povo, é compartilhar informações de caráter social, lições de moral e costumes, além de fornecer subsídios para uma educação informal.
“Essas narrativas são formas muito especiais de interpretar, analisar e superar
os dramas fundamentais da existência humana: a experiência do bem e do
mal, da justiça e da injustiça, do amor e do ódio; a existência de normas e
proibições, de sanções positivas e negativas; as questões em torno do enigma
da vida, de nossa origem, de nossa morte”. (FREITAG, op. cit.)
Antes do advento da televisão, era o rádio quem contava histórias, e reunia ao seu derredor corações e mentes mergulhadas na fantasia. Uma prova disso é a célebre novela radiofonizada por Orson Wells, nos Estados Unidos, em 1940. Wells transmitiu a “invasão da Terra por marcianos” como se ele a estivesse assistindo e a transmissão fosse ao vivo. Usava pobres e improvisados recursos de sonoplastia, contudo criativos; e os efeitos sobre os ouvintes foram de um tal realismo que provocou pânico geral na população, e entrou para a história!
Pelo final da década de 50, início de 60, havia um programa numa emissora de rádio do Rio de Janeiro que, se não me falha a memória, chamava-se “Histórias de Trancoso”. Antigamente, muita gente se referia as “Histórias de Trancoso”. Gonçalo Fernandes Trancoso1 foi o primeiro cronista português ( pelos idos de séc. XVI ). Naquela época também se falava das “Histórias do Arco da Velha” ou “da Carochinha”. Havia ainda o hábito, gostoso, de ouvir histórias infantis “do tempo em que os bichos falavam”, como dizia o narrador(a). A coqueluche, porém, eram as radionovelas como a quilométrica “O Direito de Nascer”; e as minhas preferidas: “Gerônimo, o Herói do Sertão”, novela de Moisés Weltmam ( 1957-1965 ); “O Anjo”( 1959 ) personagem criado por Álvaro Aguiar, (talvez inspirado no herói norteamericano “O Santo”); “Radar, o Homem do Espaço”, no estilo Flash Gordon.
Com a chegada da televisão, o rádio perdeu muito de seu encanto, seu feitiço e magia, e ouvir histórias ao pé do rádio deixou de ser o programa da família. O Contador de Histórias, que vivia por detrás das válvulas e altofalantes, abandonou a desconfortável moradia e mudou-se para a nova mídia: foi ser autor de novelas televisivas. E o brasileiro adquiriu o hábito que de comentar as novelas exibidas na TV; contar para um amigo(a) os capítulos perdidos, e, principalmente, se deixar envolver pelos personagens e pela trama, ao ponto de confundir o ator ou atriz com a personagem. Isso revela como a fantasia exerce uma força muito grande sobre as pessoas, e que o homem contemporâneo, que convive com a avançada tecnologia, ainda guarda um porção significativa do homem medieval, basta ver o aumento da crença em patuás, amuletos, videntes, etc.
Hoje as emissoras de rádio já não apresentam mais novelas radiofônicas, o que ao meu ver é uma bobeira de seus diretores, pois público com certeza existe. Outra coisa lamentável nas programações das rádios atuais, é a ausência de um segmento dirigido especificamente para o público infantil, como por exemplo, um programa de histórinhas infantis. Até há poucos anos, aqui em Belém, a Rádio Cultura apresentava um excelente programa para as crianças, denominado “Abracadabra”, que sumiu como num passe de mágica: Abracadabra!...
Toda criança gosta de ouvir histórias. A fantasia lhes é saudável e necessária como o ato de brincar. Para elas brincar é exercitar a imaginação. Mesmo que a criança tenha acesso aos discos e fitas, ou aos livros, a TV, ao vídeo, ao computador, não dispensa a participação de um adulto como narrador “ao vivo”, aspergindo a magia da oralidade, na hora de dormir.
Como dizia minha avó:“Entrei pela perna do pato, saí pela perna do pinto, quem quiser que conte cinco...”.
1 -Veja-se: História de Trancoso. Ed. Cátedra, 1983.
3 comentários:
Certa vez ouvi dizer que o contador é senhor dos tempos e usa as histórias para revelar as verdades da vida. Verdades que não foram sufocadas pela modernidade, o hálito vital do contador, ganha hoje outros/novos espaços e porque não nos ciberespaços?Teu texto tão bem tecido nos leva a percorrer o caminho da literatura da voz,e como quem conta um conto aumenta um ponto, peço a você permissão para puxar mais um fio e levar este texto para refletir junto ao grupo de contadores da SEMEC,pode?
Andréa Cozzi
Muito bom o texto vou passar para as profs da biblioteca da minha escola!!!
Beijinhos
Vanessa
Ciberepaço na Escola
"Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."
(Antoine de Saint-Exupéry)
Olá
Gostei muito do texto e também do seu Blog.
Convido para visitar o meu Blog Livro Animado - Livro Encantado que trabalha com o Contador de Histórias, a imaginação e a fantasia.
http://marionetesaude.blogspot.com/
Um abraço
Bete EGB
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